A arte face ao mistério do Verbo encarnado
5.
A Lei do Antigo Testamento contém uma proibição explícita de
representar Deus invisível e inexprimível através duma « estátua
esculpida ou fundida » (Dt 27,15), porque Ele transcende qualquer representação material: « Eu sou Aquele que sou » (Ex 3,14).
No mistério da Encarnação, porém, o Filho de Deus tornou-Se visível em
carne e osso: « Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu
Filho, nascido de mulher » (Gl 4,4). Deus fez-Se homem em Jesus
Cristo, que Se tornou assim « o centro de referência para se poder
compreender o enigma da existência humana, do mundo criado, e mesmo de
Deus ».(6)
Esta
manifestação fundamental do « Deus-Mistério » apresenta-se como estímulo
e desafio para os cristãos, inclusive no plano da criação artística. E
gerou-se um florescimento de beleza, cuja linfa proveio precisamente
daqui, do mistério da Encarnação. De facto, quando Se fez homem, o Filho
de Deus introduziu na história da humanidade toda a riqueza evangélica
da verdade e do bem e, através dela, pôs a descoberto também uma nova
dimensão da beleza: a mensagem evangélica está completamente cheia dela.
A
Sagrada Escritura tornou-se, assim, uma espécie de « dicionário imenso »
(P. Claudel) e de « atlas iconográfico » (M. Chagall), onde foram beber
a cultura e a arte cristã. O próprio Antigo Testamento, interpretado à
luz do Novo, revelou mananciais inexauríveis de inspiração. Desde as
narrações da criação, do pecado, do dilúvio, do ciclo dos Patriarcas,
dos acontecimentos do êxodo, passando por tantos outros episódios e
personagens da História da Salvação, o texto bíblico atiçou a imaginação
de pintores, poetas, músicos, autores de teatro e de cinema. Uma figura
como a de Job, só para dar um exemplo, com a problemática pungente e
sempre actual da dor, continua a suscitar conjuntamente interesse
filosófico, literário e artístico. E que dizer então do Novo Testamento?
Desde o Nascimento ao Gólgota, da Transfiguração à Ressurreição, dos
milagres aos ensinamentos de Cristo, até chegar aos acontecimentos
narrados nos Actos dos Apóstolos ou previstos no Apocalipse em chave
escatológica, inúmeras vezes a palavra bíblica se fez imagem, música,
poesia, evocando com a linguagem da arte o mistério do « Verbo feito
carne ».
Tudo isto
constitui, na história da cultura, um amplo capítulo de fé e de beleza.
Dele tiraram proveito sobretudo os crentes para a sua experiência de
oração e de vida. Para muitos deles, em tempos de escassa alfabetização,
as expressões figurativas da Bíblia constituíram mesmo um meio concreto
de catequização.(7) Mas para todos, crentes ou não, as realizações
artísticas inspiradas na Sagrada Escritura permanecem um reflexo do
mistério insondável que abraça e habita o mundo.
Entre Evangelho e arte, uma aliança profunda
6.
Com efeito, toda a intuição artística autêntica ultrapassa o que os
sentidos captam e, penetrando na realidade, esforça-se por interpretar o
seu mistério escondido. Ela brota das profundidades da alma humana, lá
onde a aspiração de dar um sentido à própria vida se une com a percepção
fugaz da beleza e da unidade misteriosa das coisas. Uma experiência
partilhada por todos os artistas é a da distância incolmável que existe
entre a obra das suas mãos, mesmo quando bem sucedida, e a perfeição
fulgurante da beleza vislumbrada no ardor do momento criativo: tudo o
que conseguem exprimir naquilo que pintam, modelam, criam, não passa de
um pálido reflexo daquele esplendor que brilhou por instantes diante dos
olhos do seu espírito.
O
crente não se maravilha disto: sabe que se debruçou por um instante
sobre aquele abismo de luz que tem a sua fonte originária em Deus. Há
porventura motivo para admiração, se o espírito fica de tal modo
inebriado que não sabe exprimir-se senão por balbuciações? Ninguém mais
do que o verdadeiro artista está pronto a reconhecer a sua limitação e
fazer suas as palavras do apóstolo Paulo, segundo o qual Deus « não
habita em santuários construídos pela mão do homem », pelo que « não
devemos pensar que a Divindade seja semelhante ao ouro, à prata ou à
pedra, trabalhados pela arte e engenho do homem » (Act 17,24.29).
Se já a realidade íntima das coisas se situa « para além » das
capacidades de compreensão humana, quanto mais Deus nas profundezas do
seu mistério insondável!
Já
de natureza diversa é o conhecimento de fé: este supõe um encontro
pessoal com Deus em Jesus Cristo. Mas também este conhecimento pode
tirar proveito da intuição artística. Modelo eloquente duma contemplação
estética que se sublima na fé são, por exemplo, as obras do Beato Fra
Angélico. A este respeito, é igualmente significativa a lauda extasiada,
que S. Francisco de Assis repete duas vezes na chartula, redigida
depois de ter recebido os estigmas de Cristo no monte Alverne: « Vós
sois beleza... Vós sois beleza! ».(8) S. Boaventura comenta: «
Contemplava nas coisas belas o Belíssimo e, seguindo o rasto impresso
nas criaturas, buscava por todo o lado o Dilecto ».(9)
Uma
perspectiva semelhante aparece na espiritualidade oriental, quando
Cristo é designado como « o Belíssimo de maior beleza que todos os
mortais ».(10) Assim comenta Macário, o Grande, a beleza transfigurante e
libertadora que irradia do Ressuscitado: « A alma que foi plenamente
iluminada pela beleza inexprimível da glória luminosa do rosto de
Cristo, fica cheia do Espírito Santo (...) é toda olhos, toda luz, toda
rosto ».(11)
Toda a
forma autêntica de arte é, a seu modo, um caminho de acesso à realidade
mais profunda do homem e do mundo. E, como tal, constitui um meio muito
válido de aproximação ao horizonte da fé, onde a existência humana
encontra a sua plena interpretação. Por isso é que a plenitude
evangélica da verdade não podia deixar de suscitar, logo desde os
primórdios, o interesse dos artistas, sensíveis por natureza a todas as
manifestações da beleza íntima da realidade.
CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS ARTISTAS 1999
AOS ARTISTAS 1999
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